terça-feira, 16 de junho de 2009

Currículo em debate - Caderno 1


Apresentação

O processo da vida se opera em tentativas sucessivas de libertação.
Estamos todos os dias renovando, na criatura que fomos na véspera, a criatura que seremos no amanhã. Mais do que renovando-a: refazendo-a, porque não tornamos a ser jamais o que fomos, salvos apenas de uma velhice posterior, mas construímos de fato uma vida própria, que das outras só guarda a lembrança das experiências e uma certa memória de duração com que vamos acreditando na sua continuidade.”
CECÍLIA MEIRELES

Este é o primeiro Caderno da série intitulada Currículo em Debate, resultado dos estudos e discussões iniciais sobre o processo de Reorientação Curricular do 6º ao 9º ano, desenvolvido na rede durante o ano de 2004 e que terá continuidade em 2005 e 2006.
Trata-se de um trabalho que se fundamentou em estudos teóricos e reflexões sobre o direito à educação e o desafio da qualidade do ensino, em pesquisas realizadas nas Subsecretarias Regionais de Educação e em tarefas específicas desenvolvidas em 38 unidades escolares estaduais, com pais, alunos, professores e gestores. Você encontrará neste Caderno textos teóricos, sínteses de dados coletados, entrevistas, relatos de experiências, fotos, reflexões e sugestões de atividades, dados estatísticos do censo escolar.
Como co-autor nesse processo de construção, é importante que você o utilize no esenvolvimento de todo o processo educativo, desde o planejamento das ações pedagógicas até a prática cotidiana, na realização de um trabalho integrado da equipe escolar.
São imprescindíveis a leitura criteriosa, o estudo e a utilização deste Caderno no fazer pedagógico da escola, como também de todos os que serão elaborados de forma compartilhada ao longo do processo. Está, pois, em suas mãos, o resultado de um trabalho partilhado e dinâmico que deverá ser o seu próprio instrumento de trabalho na tarefa docente, servindo a um propósito que é de todos nós, agentes da educação: garantir o direito à educação de qualidade.
Equipe Técnico-Pedagógica
Superintendência do Ensino Fundamental

A PROPOSTA DE REORIENTAÇÃO CURRICULAR

Nas últimas décadas, ampliou-se o acesso à educação escolar no país, ofertouse o ensino institucionalizado às diferentes camadas sociais, conquistou-se um espaço para o Desenvolvimento do cidadão e a construção da cidadania. Busca-se agora, para garantir o direito à educação, a implementação de políticas públicas eficientes de atendimento à criança e ao adolescente, a criação de projetos de ensino e práticas educativas inovadoras e eficazes, a transformação da escola num espaço de aprendizagens significativas, que garantam a permanência do aluno e a qualidade do ensino ofertado.
Reconhecendo esse desafio, a Secretaria de Estado da Educação coloca como meta assegurar a permanência do aluno na escola, oferecendo um ensino de qualidade em todos os níveis. Essa meta se evidencia na segunda fase do Ensino Fundamental, por meio da proposta de Reorientação Curricular do 6º ao 9º ano, que tem como base ações que rompem com a cultura de evasão e repetência que se instaurou nas escolas, ações que propiciam um trabalho pedagógico com habilidades e conteúdos significativos, com valores e competências de que os jovens devem se apropriar até o final desse ciclo de ensino. Cabe ressaltar que aproximadamente 70% dos jovens matriculados nas quatro séries finais do Ensino Fundamental freqüentam a rede estadual de ensino.
Para o sucesso dessa proposta é fundamental o estabelecimento de parcerias que dêem agilidade e vigor às ações e que fortaleçam o trabalho docente, favorecendo o desempenho dos alunos e dos professores, que, certamente, darão um salto qualitativo no desenvolvimento de suas competências.


O CAMINHO JÁ PERCORRIDO

Como ação de fortalecimento do trabalho docente foram desenvolvidas, em maio e junho de 2004, as Oficinas Pedagógicas, distribuídas em sete pólos regionais, abrangendo os 246 municípios goianos. Receberam formação professores de 5ª a 8ª série de áreas específicas e coordenadores pedagógicos de unidades escolares, representantes dos municípios. O objetivo era oferecer subsídios para o fortalecimento do trabalho pedagógico e melhoria da qualidade das aulas, como também para a organização e orientação de grupos de estudos. Com isso pretende-se criar na escola uma cultura de formação continuada e beneficiar, assim, todos os professores e alunos da 2ª fase do Ensino Fundamental da rede pública do Estado.
Em continuidade ao projeto Oficinas Pedagógicas/Formação Continuada, escolas, subsecretarias e Superintendência de Ensino Fundamental, com assessoria do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária – CENPEC –, mobilizaram-se, no 2º semestre de 2004, para aprofundar os estudos e reflexões sobre a Reorientação Curricular do 6º ao 9º ano. Realizaram-se nesse período três encontros de formação centralizada, por meio de um fórum de debates sobre o Direito à Educação e o Desafio da Qualidade do Ensino, com palestras, reflexões, trabalhos de grupo envolvendo coordenadores pedagógicos, representantes das duplas e/ou do
Programa de Aceleração da Aprendizagem de 5ª e 6ª séries das 38 Subsecretarias Regionais de Educação. Realizou-se a socialização desses encontros em todas as subsecretarias regionais e em unidades escolares da rede estadual, além de tarefas específicas desenvolvidas em 38 escolas-pesquisa, uma por subsecretaria. As escolas-pesquisa são unidades da rede que se apresentam como espaço para estudos e reflexões, entrevistas e levantamento de dados, num diálogo sistematizado com a SRE e SEE, que não têm a pretensão de imprimir a esse trabalho caráter de pesquisa científica.
Em 2006, serão realizados mais dois encontros, priorizando, além das reflexões, palestras de fundamentação teórica, o desenvolvimento de tarefas nas escolaspesquisa e também a formação de grupos de estudos por área de conhecimento do currículo escolar. Esses grupos foram constituídos pelos Òprofessores orient adores” de áreas específicas e coordenadores pedagógicos representantes dos municípios do projeto Oficinas Pedagógicas/Formação Continuada. Constituiram ainda essa equipe, os professores multiplicadores e as mediadoras do Programa de Aceleração da Aprendizagem de 5ª e 6ª séries das dezesseis subsecretarias regionais de educação que o desenvolvem, uma vez que, desde 2001, eles já trabalham uma proposta curricular que implica nova abordagem de conteúdos e da prática docente, apresentada
no material Ensinar e Aprender, elaborado pelo CENPEC.
O processo participativo de reorientação curricular iniciado em 2004, com previsão de término em 2006, vem sendo registrado desde o início e dará origem, no final, às diretrizes para o ensino público do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental em Goiás.
Como pretende ser o instrumento propulsor que orientará e subsidiará a tarefa docente nos próximos anos, é importante que os educadores se reconheçam nele. Por isso envolve professores, gestores e técnicos pedagógicos de todas as instâncias educacionais do sistema e estimula a sua participação.

NOSSO ALVO

O objetivo principal desse movimento, que se iniciou com a realização das Oficinas Pedagógicas, é a apropriação, pelos profissionais da Educação, de uma proposta pedagógica que considera alguns valores imprescindíveis, como o direito à educação e a consciência de que todos os alunos são capazes de aprender.
Para isso, estabelece como metas a atingir nos próximos dois anos:
• a redução das taxas de evasão e repetência nas escolas estaduais;
a implementação de uma proposta curricular com novos recortes e abordagens de conteúdos e práticas docentes que assumam as aprendizagens específicas de cada área e as aprendizagens ligadas à leitura e à escrita, como compromisso de todos;
• a ampliação dos espaços de discussão coletiva nas escolas e nas subsecretarias.
Propõe-se, então, a efetivação do processo de formação continuada em serviço, com a utilização do horário de trabalho coletivo previsto no calendário escolar e com a sistemática de acompanhamento às unidades escolares, por parte das equipes pedagógicas das subsecretarias. Isso implica fortalecer as ações de acompanhamento na 2ª fase do Ensino Fundamental e potencializar a discussão curricular nos horários de trabalho coletivo das escolas.
Sabemos que o sucesso dessa proposta depende do compromisso, do empenho
e do envolvimento de todos, já demonstrados desde o início do processo. Esse empenho deverá continuar na leitura atenta e estudo rigoroso desse documento, que possibilitará a cada um a reflexão sobre a sua prática e a construção de caminhos para uma atuação inovadora e criativa junto aos alunos.
ELIANA MARIA FRANÇA CARNEIRO
SECRETÁRIA ESTADUAL DA EDUCAÇÃO

FORMAÇÃO CONTINUADA DOS EDUCADORES DO ENSINO FUNDAMENTAL - 6º AO 9º ANO

De repente, a vida começou a impor-se, a desafiar-me com seus pontos de interrogação,
que se desmanchavam para dar lugar a outros. Eu liquidava esses outros e apareciam novos.”
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

A dinâmica do mundo contemporâneo tem imprimido um ritmo acelerado de mudanças, às quais as escolas não estão alheias. Assim, cabe ao professor manter uma permanente reflexão acerca do seu tempo e de sua prática.
Nesse sentido, por meio da formação continuada, é possível compreender a escola como um espaço coletivo de reflexão, de formação e de produção de conhecimento pautado no princípio da coletividade que perpassa os setores da comunidade escolar.
No Estado de Goiás, a formação continuada assume caráter de política pública e é implementada de 5ª a 8ª série, por meio:
• das Oficinas Pedagógicas, que têm como objetivo discutir amplamente com a rede a prática pedagógica dos professores, bem como a concepção de educação e das áreas do conhecimento;
• das capacitações dos profissionais que atuam nas turmas do Programa de Aceleração da Aprendizagem de 5ª e 6ª Séries, para aprofundamento e acompanhamento da execução da Proposta Pedagógica desenvolvida nessas turmas;
• da Sistemática de Acompanhamento das Unidades Escolares pelas duplas pedagógicas das SREs, implantada no início de 2004.
A proposta das Oficinas Pedagógicas é constituir grupos de estudos específicos nas áreas de conhecimento do Ensino Fundamental, os quais se consagrariam como espaço para repensar a prática, conforme vem se verificando com as equipes de dezesseis subsecretarias que desenvolvem o Programa de Aceleração da Aprendizagem de 5ª e 6ª Séries e já trabalham com uma proposta pedagógica diferenciada desde 2001. O acompanhamento às unidades escolares pelas duplas pedagógicas é uma ação que objetiva fortalecer as equipes mediante uma parceria
efetiva entre subsecretaria e escolas.
Essas ações foram o pontapé inicial para desencadear o processo de Reorientação Curricular, que busca estabelecer momentos de reflexão da prática pedagógica de forma coletiva e participativa, nos quais se podem compartilhar problemas, dificuldades e sucessos ocorridos na atividade de cada um.
A proposta de Reorientação Curricular do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental parte do princípio de que é necessário ouvir as diversas vozes que estão presentes na rede. Por isso, a opção metodológica e política de uma ação de caráter participativo deve estar presente tanto nos grupos de estudos nas escolas, quanto nos encontros de reflexão que estão em curso para discutir a reorientação, como também no acompanhamento das duplas e equipes de Aceleração da Aprendizagem de 5ª e 6ª Séries.
O processo de Reorientação Curricular tem se efetivado mediante uma ampla discussão
entre as 38 Subsecretarias Regionais de Educação do Estado de Goiás, que estão representadas, nessa primeira etapa, por coordenadores e duplas pedagógicas das Subsecretarias, bem como por integrantes da equipe do Programa de Aceleração da Aprendizagem de 5ª e 6ª Séries.
São esses técnicos pedagógicos que estão socializando, desde setembro de 2004, nas escolas da rede, as palestras e as discussões sobre os temas apresentados nas formações centralizadas. Além dessas socializações, esses profissionais estão fazendo também um levantamento dos dados da realidade escolar de sua região. Os dados estão representados através das escolas-pesquisa, uma vez que, no momento, não há estrutura para cobrir toda a rede.
Em 2005, devem também participar das formações centralizadas professores orientadores
de grupos de estudos e coordenadores pedagógicos representantes dos municípios, bem como as equipes do Programa de Aceleração da Aprendizagem de 5ª e 6ª Séries das dezesseis Subsecretarias do Estado que o desenvolvem, constituindo assim as equipes multidisciplinares responsáveis pela proposta de Reorientação Curricular do 6º. ao 9º. ano no Estado de Goiás.
Esse movimento tem como finalidade: a efetiva participação do maior número possível de representantes da educação no Estado; o exercício efetivo de uma ação coletiva e participativa nesse momento de discussão do currículo, com todas as suas implicações; a reflexão conjunta de uma concepção de ensino que defende uma prática baseada na democracia e comprometida com a garantia do direito a uma educação de qualidade.
Equipe Técnico-Pedagógica
Superintendência do Ensino Fundamental


O DIREITO À EDUCAÇÃO

ADRIANE ÁLVARO DAMASCENA
ROSELY APARECIDA WANDERLEY ARAÚJO

A cultura é um privilégio. A escola é um privilégio. E não queremos que seja assim...”
GRAMSCI

A escola pública, universal, laica, obrigatória e gratuita era um dos princípios defendidos pela Revolução Francesa no séc. XVIII, no contexto do Estado educador. Como direito social e de cidadania, o acesso à escola se afirmou apenas no séc. XX, de forma diferenciada nos países do mundo, de acordo com peculiaridades históricas de cada um.
No Brasil, o Ensino Fundamental é reconhecido como um direito em 1934 e em 1988 é reconhecido como direito público subjetivo; ou seja, sendo obrigatório e gratuito, quem não tiver acesso a essa etapa da escolaridade pode recorrer à justiça.
O fato de o direito à educação ser declarado e inscrito em lei não assegura seu cumprimento; em muitos países ele ainda não se efetivou ou se efetivou parcialmente, particularmente naqueles que sofreram colonização; no entanto, declarado em lei, torna-se um horizonte a ser perseguido.
Ainda hoje, o direito à educação apresenta-se como um desafio para as políticas públicas que visam: à efetivação da democratização da educação formal – garantia de escolaridade de qualidade para todos; à constante ação reflexiva por parte dos profissionais da educação acerca da sua própria compreensão de educação e de cidadania – garantia de condições de trabalho e de formação; à participação efetiva da sociedade em geral – definição, respaldo e legitimação da proposta educacional adotada.
Pensar a educação do ponto de vista do direito é a grande diretriz da proposta de Reorientação Curricular que se apresenta em curso nesta rede, pautada no diálogo entre educadores. A apropriação coletiva dessa proposta só será possível numa perspectiva que repense os princípios e os fins da educação, postos nas atuais condições de ensino e na cultura escolar vigente.
A discussão acerca do direito precisa ser pautada numa compreensão de que é uma construção social, e parte do princípio de que os direitos emergem muitas vezes da necessidade e da demanda da sociedade, para só depois fazer parte de qualquer legislação como garantia de sua efetivação.
A legislação, de uma maneira geral, é um campo de luta e de reafirmação de interesses no sentido político. Ela permite constituir um espaço cada vez maior de conquistas democráticas e da efetivação de justiça social, possibilitando, assim, um alicerce contra possíveis desigualdades.
A compreensão por parte dos educadores acerca da importância da legislação é cada vez maior, pois, como cidadãos, percebem que, apesar das contradições postas pela realidade, as leis são um importante suporte de luta, uma vez que elas sinalizam e viabilizam a efetivação de uma educação mais democrática, como elemento fundante de uma sociedade menos injusta.
Assegurar o direito da população à escolaridade, como um projeto político, pressupõe considerar os problemas de dentro e de fora do sistema escolar que contribuem para a exclusão dos alunos da escola. Para Sacristán (2001, p.25), um dos pontos críticos dessa questão é o fato de que “os Estados costumam aceitar o direito em suas legislações antes de prever as condições necessárias para exercê-lo [...]”.
Além disso, não se pode perder de vista que, enquanto não se possibilitar um acesso amplo à educação, com meios para se adquirir competências, qualquer teoria de igualdade de direitos “não conferirá dignidade às pessoas e estas não serão mais do que idealmente iguais”.
Pensar na escola que fazemos e no tipo de escola que queremos implica rever as condições atuais da qualidade do ensino oferecida, eixo fundamental do direito à educação, ancorado num princípio democrático que vem sendo cotidiana e historicamente construído. Para isso é necessário fazer um movimento de “desnaturalização da realidade”, numa constante problematização dessa realidade. Nesse sentido, precisamos realizar um movimento de destaque ao óbvio” como diria Sacristán, indagando o real sentido dos fatos, mesmo os corriqueiros, buscando entender o porquê de serem como são.
O reconhecimento dos educadores de que a lei é um fator importante para a democratização da educação é de fundamental importância, particularmente quando se leva em conta que, apesar da grande expansão do acesso verificado nos últimos anos no país, o direito à educação ainda não se efetivou de maneira concreta.

Segundo Sacristán, o exercício do direito à educação gratuita e obrigatória exige algumas condições materiais para se tornar realidade, a saber:

a) o acesso a uma vaga concreta na escola;
b) a possibilidade de o aluno assistir regularmente às aulas e permanecer na escola durante a etapa considerada como obrigatória, sem obstáculos provenientes das condições de vida externas ou das práticas escolares internas que possam levar à exclusão ou à evasão escolar;
c) a possibilidade de se prescindir do trabalho infantil para que se possam praticar as duas condições anteriores.

As condições materiais de que fala Sacristán podem ser resumidas em três palavras-chave muito conhecidas e veiculadas entre educadores, sem as quais não se realiza a GARANTIA DO DIREITO À EDUCAÇÃO, a saber:ACESSO, PERMANÊNCIA e QUALIDADE. A sustentação desse tripé exige equilíbrio entre os três elementos.
Portanto, os esforços empreendidos para o aumento de um elemento demandam outros tantos esforços para que os demais cresçam na mesma proporção.
Mas a quem cabem tais esforços? Ao Estado? À família? À escola? À sociedade?
Na verdade, a responsabilidade de garantir o direito à educação para as crianças e jovens brasileiros é de todos – Estado, família e sociedade. Cabe ao Estado a obrigação de oferecer educação, conforme podemos constatar:
• no artigo 208 da Constituição Federal de l988 , lemos que o “ dever do Estado com a Educação será efetivado mediante a garantia de acesso ao ensino obrigatório e gratuito...” (CF, l988);
• no artigo 3º da LDB, encontramos que cabe ao Poder Público “assegurar o direito à educação escolar, em igualdade de condições de acesso e permanência pela oferta de ensino público e gratuito em todos os níveis, além de outras prestações suplementares, quando e onde necessário” (LDB, l996);
• e ainda no artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante o direito à educação da criança e do adolescente, afirma-se que é dever do Estado “assegurar-lhes o acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência” (ECA, l990).

Segundo a literatura educacional brasileira, a inscrição desse direito em leis de caráter nacional teve como efeito uma forte pressão para o aumento das matrículas no Ensino Fundamental na rede pública, que em 2002 chegou a atingir 97% da população brasileira (pressão política do Ministério Público e da população). Isso confirma a necessidade da declaração da garantia do direito, principalmente em países como o Brasil, com forte tradição elitista, no qual o acesso ao bem social é privilégio de poucos. Segundo Cury (2002,p.259), “declarar é retirar do esquecimento e proclamar aos que não sabem, ou esqueceram, que eles continuam a ser portadores de um direito importante. Disso resulta a necessária cobrança desse direito quando ele não é respeitado”.
Foi a partir da Constituição Federal de 1988 que os governos estaduais passaram a construir novas escolas, aumentando o número de vagas disponíveis para a população nas diversas faixas etárias.
Em Goiás, de acordo com as reflexões que estão sendo feitas pelos educadores do Estado, nessa primeira etapa de estudos do processo de Reorientação Curricular, alguns fatores contribuíram para o aumento das matrículas na rede estadual de ensino, como o início do processo de informatização das matrículas, a melhor distribuição na localização das escolas, um compromisso maior do Estado com a educação inclusiva e uma maior conscientização das famílias da necessidade de matricular os seus filhos.
Todas essas medidas, evidentemente, implicaram aumentos nos investimentos e no custeio do sistema de ensino, portanto foram esforços empreendidos pelo Estado para ampliar o atendimento à demanda. Não se pode negar que tais esforços são bastante significativos e, por que não dizer, éticos? Sobretudo quando se analisa a escola elitista da primeira metade do século XX, que atendia a uma minoria da população; e a escola excludente e seletiva da segunda metade daquele século, que, apesar de ampliar o número de vagas, continuou a reprovar a maioria
dos alunos, provocando altos índices de evasão e distorção idade/série.
No entanto, mesmo com o grande avanço na oferta de vagas, tais esforços ainda não foram suficientes para universalizar de fato o Ensino Fundamental e atender à grande demanda pela Educação Infantil e Ensino Médio. Segundo os educadores goianos, os principais desafios que o Estado tem pela frente para universalizar o acesso ao Ensino Fundamental são estes: concluir o processo de informatização das matrículas, adequar a estrutura física das escolas aos portadores de necessidades especiais, garantir o transporte dos alunos da zona rural, além de ampliar significativamente as vagas de Educação Infantil e Ensino Médio.
Está evidente que melhoraram os números no que diz respeito a um elemento do tripé do direito à educação – o acesso à educação. Mas este não se manterá em equilíbrio se não houver uma melhoria proporcional nos números dos outros dois elementos.
A democratização da educação só se efetivará, de fato, se, além do acesso, forem garantidas também a permanência do aluno na escola e a qualidade do ensino para todos. Isso significa uma melhora qualitativa dos serviços oferecidos pelos sistemas de ensino, nos quais ainda perduram mecanismos de seletividade e exclusão, afastando da escola uma significativa parcela da população, conforme se pode observar por meio dos dados de retenção e abandono no Estado de Goiás.
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É importante observar que nesse processo de democratização, além do grande desafio do Estado de ampliar o patamar dos recursos disponíveis para o financiamento da educação, a escola e a sociedade também têm suas quotas de responsabilidade.
Para isso, basta atentar para o que segue:
• no artigo 205 da Constituição Federal de l988, lemos: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
• no artigo 3º da LDB, está previsto que: “A educação, direito fundamental dos cidadãos, é dever do Estado e da família, com a colaboração da sociedade[...]”
• no artigo 5º da LDB, consta: “É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores a partir dos sete anos de idade, no ensino fundamental” (BRASIL, 1996);
• no artigo 53 do ECA, encontramos: “É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais” (BRASIL, 1990);
• no artigo 56 do ECA, constatamos que “os dirigentes de estabelecimentos de Ensino Fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de: I – maus-tratos envolvendo seus alunos; II - reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares; III - elevados níveis de repetência.” (BRASIL, l990).
Portanto, para assegurar a permanência do aluno na escola e a qualidade do ensino,
Estado, escola e sociedade dividem responsabilidades.
A síntese das discussões feitas nessa primeira etapa de estudos sobre a Reorientação Curricular sinaliza que não são poucos os avanços conquistados em Goiás no processo de democratização do ensino e indica, como grande desafio para o nosso Estado, a questão da qualidade, inclusive como condição de permanência.
Foram apontados como conquistas pelo grupo de educadores goianos os investimentos
em programas de correção de fluxo; os programas sociais (Salário-escola, PETI, Merenda Escolar e Livro Didático); a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos (incluindo um ano da pré-escola; a sistemática de acompanhamento das escolas por meio das duplas pedagógicas das subsecretarias; a universidade parcelada, que possibilita a habilitação dos professores; a implantação do horário de trabalho coletivo nas escolas; a descentralização de recursos financeiros e didáticos e a criação dos conselhos escolares. Trata-se de ações que evidenciam os avanços na qualidade do ensino público de Goiás. Segundo esse mesmo grupo, lideram a lista dos desafios: o combate à cultura de naturalização da evasão e repetência instalada nas escolas; a garantia dos 200 dias letivos e das 800 horas anuais que devem ser oferecidas aos alunos; a ampliação do tempo para aprendizagem; a revisão curricular; a garantia de condições para o acompanhamento das duplas pedagógicas; a elaboração coletiva do Projeto Político Pedagógico e a falta de substituição de professores durante os cursos de formação continuada. Além disso, apontam também a melhoria das condições de trabalho, como a elaboração do plano de carreira e a valorização salarial.

Convite para reflexão conjunta

1. Há em sua região crianças e adolescentes fora da escola? Caso haja, o que sua escola pode fazer para incluí-los no sistema educacional ?
2. Consulte com seu grupo os dados de aprovação, reprovação e evasão de sua escola nos últimos anos. Analise esse movimento e levante hipóteses sobre suas possíveis causas. Discuta o que é viável a escola fazer para atacar os pontos críticos.
3. Registre a proposta no Projeto Político-Pedagógico da escola.
4. Preencha o quadro a seguir e entregue uma cópia à dupla pedagógica responsável pelo acompanhamento em sua escola.


Taxas de aprovação, reprovação e abandono
Nome da escola:___________________________Data:___________
Município:______________________ Subsecretaria:__________________

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A QUALIDADE DO ENSINO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO QUE QUEREMOS


ANA CHRISTINA DE PINA BRANDÃO
FÁTIMA ALCÍDIA COSTA MOTA
PRICILA FERREIRA DE SOUZA


“Excluem-se da escola os que não conseguem aprender, excluem-se do mercado de trabalho os que não têm capacidade técnica porque antes não aprenderam a ler, escrever e contar e excluem-se, finalmente, do exercício da cidadania esses mesmos cidadãos, porque não conhecem os valores morais e políticos que fundam a vida de uma sociedade livre, democrática e participativa”. VICENTE BARRETO

A preocupação com a qualidade de ensino entrou fortemente na pauta de debates das políticas públicas do país, a partir da década de 1980, com a crescente e necessária ampliação do número de vagas no ensino fundamental, que melhorou o acesso das camadas populares à escolarização. Esse processo não foi devidamente acompanhado dos necessários investimentos na formação
dos educadores e nas condições de trabalho das escolas, gerando problemas sérios no processo de ensino e aprendizagem e baixo desempenho dos alunos nas avaliações nacionais e internacionais, implementadas nessa década, praticamente em todos os países em desenvolvimento, por força das agências multilaterais financiadoras de projetos educacionais.
Mas, o que entendemos por qualidade na educação? De que estamos falando, quando nos referimos à qualidade do ensino, hoje? O conceito de qualidade é uma construção social como qualquer outro e, por isso, é dinâmico e flexível, tomando vários sentidos a partir das necessidades e objetivos que tem cada sociedade, cada comunidade. Não há um modelo único para uma educação de qualidade, mas pode e deve haver um consenso na sociedade sobre
o que seja uma educação de qualidade, sem o qual não se leva um projeto nacional adiante. É com esse entendimento que abrimos uma ampla discussão com a rede e com a comunidade sobre o que cada um pensa a respeito de qualidade.
Vejamos o que pais, professores e alunos de escolas das várias regiões do Estado de Goiás falaram nas entrevistas realizadas na primeira etapa dos trabalhos da Reorientação Curricular, ao serem questionados acerca do que seria para eles uma escola de qualidade:

PAIS
• Possibilita a vida melhor.
• Oferece condições para o conhecimento no aspecto sociocultural.
• Prepara para a vida e ajuda a formar o caráter.
• Possibilita o crescimento pessoal através do conhecimento adquirido.
• Possui professores com habilitação na área em que atuam e que os valoriza.
• Tem sua equipe em sintonia e promove a participação de todos.
• Possui alunos disciplinados.

ALUNOS
• Oferece espaço de participação.
• Possibilita o diálogo entre alunos, coordenadores e professores
• Oferece aulas atrativas
• Possui professores de qualidade e dinâmicos, e que conseguem manter a disciplina em sala de aula.
• Utiliza materiais e recursos pedagógicos.
• Tem consciência da necessidade dos alunos.

PROFESSORES
• Cumpre sua função social e assume seu papel de transformadora da realidade.
• Respeita as diferenças.
• Prepara o aluno para resolver situações-problema e desenvolver o raciocínio crítico e reflexivo.
• Permite que todos os valores do processo de ensino - aprendizagem sejam autônomos.
• Possui profissionais capacitados e compromissados.


Podemos observar que, direta ou indiretamente, a opinião geral entre todos é a de que uma escola de qualidade é aquela que oferece um espaço de participação e criatividade onde se promove o diálogo, cujos profissionais, qualificados e dinâmicos, contribuem para o desenvolvimento do raciocínio crítico e reflexivo, propiciando o crescimento do educando em diversos aspectos.
Embora essa seja a primeira escuta de uma conversa que precisa ser aprofundada e ampliada com outros pais, alunos e professores, bem como com a sociedade, sem a pretensão de chegar rapidamente a uma compreensão comum, essas falas se aproximam consideravelmente de alguns pontos apresentados no Primeiro Estudo Internacional Comparativo sobre Linguagem, Matemática e Fatores Associados – 2000 Unesco/Chile, acerca das evidências do que vem a ser uma escola de qualidade (ver texto ao final do caderno). A análise comparativa desses indicadores de qualidade pode nos dar elementos preciosos para avançar na discussão e definição do que é a qualidade.
Ao tomarmos esses indicadores como referências, constataremos que a qualidade da educação no Estado tem muito o que avançar, porque, apesar da redução crescente dos índices de evasão, retenção e distorção idade-série observados em nossas escolas, eles ainda se mantêm em patamares elevados. Isso significa que mesmo com as ações implementadas no sistema para combater esses índices, com destaque para o trabalho coletivo, a recuperação paralela, as implementações de projetos socioculturais e a formação de grupos de estudos, as escolas pesquisadas não conseguiram revertê-los; não haveria, então, outros fatores a serem considerados?
Possivelmente, sim. E talvez, a partir dessa hipótese, seja preciso observar se o ensino público oferecido àqueles que o procuram é adequado às suas necessidades e às várias transformações que permeiam a sociedade brasileira atual. É preciso observar se a escola de hoje ainda não é a mesma da segunda metade do século passado. Vale dizer, segundo Faustinoni da Silva, em seu texto Ensino Fundamental: direito de cidadania, que, com a expansão do acesso a escola passou a reprovar a maioria dos alunos, em vez de se transformar para cumprir sua função social dentro
da nova realidade, o que causou altos índices de evasão e defasagem idade série. Segundo essa autora, “não há educação de qualidade quando uma minoria apenas consegue aprender”. Em outras palavras, não há qualidade quando há exclusão. Logo, a escola que direta ou indiretamente cria mecanismos de exclusão enfraquece seu papel social. A concepção de educação que defendemos tem como fundamento os valores humanos e como foco a constituição e emancipação do sujeito, apoiando-se numa prática inclusiva na qual se considera o direito à diferença.
A educação desperta o sentido da humanização e socialização dos sujeitos quando se fundamenta no valor do indivíduo e do coletivo. Os valores humanos orientam e dão sentido às relações, aproximam e estreitam a busca da convivência como determinante da inclusão social, na qual todos se co-responsabilizam pela construção de uma sociedade solidária. Cabe ressaltar que, a partir dos anos 1990, a questão das diferenças vem ocupando um lugar importante no discurso políticopedagógico no país.
A diversidade cultural é muito mais complexa e multifacetada do que parece à primeira vista; significa respeitar as diferenças. Por isso, refletir sobre essa diversidade exige de nós um posicionamento crítico e político e um olhar mais ampliado que consiga abarcar os seus múltiplos aspectos.
O reconhecimento da existência de diversos componentes dentro da ampla temática da diversidade cultural – etnia, gênero, geração, necessidades especiais, orientação sexual, por exemplo – coloca-nos frente a frente com a luta desses e de outros grupos em prol do respeito à diferença. Coloca-nos, também, diante do desafio de implementar políticas públicas em que a história de cada grupo social e cultural seja respeitada dentro de suas especificidades, sem perder de vista o diálogo e a garantia dos direitos sociais.
Convém lembrar que a função social e política da escola é ampliar a compreensão de mundo das novas gerações, por meio dos conhecimentos historicamente acumulados, formando cidadãos críticos, solidários e participantes do projeto de democratização e humanização da nossa sociedade. Nesse sentido, a educação escolar ocupa um lugar de destaque na sociedade e na discussão sobre a diversidade cultural. Por assim dizer, a escola é um dos espaços socioculturais em que as diferentes presenças se encontram, posto que é na relação com o outro que se constitui o sujeito.
A escola tem um papel importante na sociedade, particularmente num país marcado por desigualdades econômicas e sociais. Cabe-lhe investir na ampliação de visão de mundo das crianças e dos jovens e no desenvolvimento da cidadania, principais condições de inclusão social, para evitar a violência social e a marginalização das pessoas.
A escola, portanto, atua na formação do caráter ético e moral do cidadão, uma vez que educar significa propiciar acesso ao conhecimento sistematizado historicamente pelas diferentes áreas do conhecimento. Mas significa também promover a vivência de valores e atitudes consideradas fundantes da convivência social. Uma escola de qualidade forma cidadãos críticos capazes de compreender o mundo e suas contradições, estabelecendo múltiplas relações entre os fatos, e também cidadãos conscientes de seus direitos e deveres sociais, capazes de transformar e criar uma realidade mais justa e solidária.


Convite para reflexão conjunta
1. Com base no “Primeiro Estudo Internacional Comparativo sobre Linguagem, Matemática e Fatores Associados” - 2000 Unesco/Chile, entreviste pais, professores e alunos sobre o que é uma escola de qualidade.
2. Os conteúdos que trabalhamos em nossas aulas e a forma como trabalhamos têm contribuído para aproximar o ensino da educação que queremos?
3. Que propostas deveremos implementar para avançar em qualidade, no que se refere a cada área do conhecimento?
4. Após as reflexões, destaque os pontos fortes de sua escola e relacione os desafios a serem vencidos pela equipe escolar, tendo como base as “Evidências de uma boa escola segundo estudos realizados pela Unesco / Chile” (ver texto ao final do caderno).



Nome da escola:______________________________________ Data:___________
Município:__________________________ Subsecretaria:_____________________



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UMA EXPERIÊNCIA BEM SUCEDIDA

O projeto Cultivando a Paz na Escola surgiu com a necessidade de resgatar a dignidade, o respeito, a solidariedade e a cidadania da equipe escolar e da comunidade, e também de combater os altos índices de violência nas escolas, de violência doméstica e contra a mulher, o alcoolismo e as drogas, os altos índices de infrações praticadas pelos adolescentes, que na grande maioria não tinham concluído o Ensino Fundamental e estavam fora da escola.
O projeto teve início em 2000, com a parceria da Promotoria da Infância e Juventude, através de reuniões com o promotor Dr. Márcio do Nascimento, e todos os funcionários, alunos, pais, comunidade e empresários da região para discutir uma solução de valorização da escola e do jovem na construção de novos valores sociais e morais. No início, foram ministradas várias palestras, feitas várias promotorias para regularizar documentações e situações de famílias da comunidade, como por exemplo falta de certidão de nascimento, encaminhamentos relativos à guarda de filhos, pensão alimentícia, divórcio e outros.
Como a escola quis dar continuidade a essas ações iniciadas e precisava de ajuda financeira, buscou outros parceiros, tais como Furnas – Centrais Elétricas do Brasil S.A, que deu ao colégio, sem ônus nenhum ao Estado, um Centro Cultural, composto de uma sala de estudo e pesquisa, um laboratório de informática, dois banheiros, (um masculino e outro feminino) e uma quadra poliesportiva, para a prática de esportes e aulas de Educação Física.
Essa parceria trouxe excelentes resultados. A escola conseguiu diminuir os índices de evasão escolar, aumentar os índices de aprovação, diminuir os índices de violência e conquistou maior respeito da comunidade. As aulas de Educação Física, antes praticadas na terra, agora são desenvolvidas na quadra; a escola participou pela primeira vez dos jogos estudantis do Estado e está no Projeto Segundo Tempo, com 200 alunos. Os educadores passaram a se sentir cidadãos mais valorizados, pois participam desde o começo do projeto com dignidade, respeito, solidariedade e cidadania. Enfim, melhorou muito a qualidade da educação na escola. (Relato do diretor do Colégio Estadual José Bonifácio da Silva, em Aparecida de Goiânia , GO, Geziel A.lves Pereira).



ENTREVISTA DR. MÁRCIO DO NASCIMENTO

O que o motivou a criar o projeto Cultivando a Paz na Escola?

A concepção da idéia do projeto, na verdade, seria trabalhar a questão da violência social. Como eu trabalho com o adolescente infrator, sempre me preocupei em fazer alguns questionamentos: qual a escolaridade do adolescente, se está estudando ou não, por que não está estudando. Depois de três anos, de 1999 a 2001, fui tabular esses dados e percebi que cerca de 50% dos adolescentes infratores não estavam freqüentando a escola e os que estavam, ou melhor ,que diziam estar estudando, na verdade só estavam matriculados. A distorção idade/série era muito grande. Posso dizer pra vocês que 90% não tinham concluído o ensino fundamental. Isso me trouxe uma reflexão: por que esses meninos não estão na sala de aula? Se não estão na escola, o que estão fazendo com o tempo ocioso deles? Acabam se envolvendo em atos infracionais e eu tenho que atendêlos aqui como adolescentes infratores e não como alunos indisciplinados. Foi a conclusão a que cheguei.
Propusemo-nos, então, realizar um diagnóstico a partir da realidade da escola. Para fazê-lo, idealizamos um documento com fidelidade ao aluno, que relacionaria os principais fatos que ocorrem na escola, as providências tomadas, os resultados obtidos, ou seja, a escola procuraria resolver os seus problemas internamente. Não resolvendo, ela encaminharia o documento para a Promotoria da Infância e da Juventude. Nessa época, estava trabalhando comigo uma estagiária do Serviço Social que achou interessante o projeto e se dispôs a fazer as visitas domiciliares. Após as visitas, fazia um relatório e passava para mim. Posteriormente, eu chamava os familiares envolvidos para discutir as intervenções necessárias. Depois de algum tempo, percebemos que isso era muito pouco e, além do mais, estávamos criando mais uma instância para constranger um aluno indisciplinado, que já era chamado na coordenação, na diretoria e agora para mais um outro lugar, a Promotoria. Diante disso, pensamos em como melhorar o espaço da escola, sua estrutura física. Consideramos que precisaria se criar uma biblioteca, sala de leitura, quadra de esportes, enfim, ambientes inclusivos onde o aluno pudesse estar quando, por exemplo, o professor faltasse...
Idealizamos assim o projeto que denominamos Cultivando a Paz na Escola, baseado em três princípios ou três valores fundamentais: solidariedade, dignidade e respeito.
Além do projeto Cultivando a Paz na Escola, que outras ações o senhor conhece e indica para as escolas?

Eu indicaria cursos de formação para a equipe escolar, sobre ética e cidadania. Em Goiânia, por uma iniciativa do Ministério Público do Estado de Goiás, sob a coordenação do Dr. Paulo Miranda, Promotor de Justiça, há um projeto de treinamento sobre esses temas, principalmente a cidadania, para professores e coordenadores pedagógicos de escolas públicas municipais e estaduais. Estes são estimulados a desenvolver projetos relacionados aos temas propostos nas suas escolas.

O senhor acha que Escola e Justiça devem estabelecer uma parceria constante?

Não seria bem Justiça. Seria o envolvimento do Ministério Público, através do Promotor de Justiça, que tem hoje uma respeitabilidade e uma penetração muito grande na sociedade. E diante dessa aproximação pode estar amenizando algumas questões que ocorrem no ambiente escolar, muitas vezes até mediando conflitos que se verificam entre alunos, funcionários e a direção da escola. Conflitos estes que na maioria das vezes são resultantes de conflitos familiares que desembocam na escola, tais como o abuso sexual, o espancamento, os maus-tratos, que crianças e adolescentes sofrem em casa. Quando isso ocorre, este aluno chega na escola e quer fazer a mesma coisa. Portanto, várias situações conflituosas que ocorrem no ambiente escolar estão lá atrás, no ambiente familiar, e não na escola; mas através da escola o Ministério Público pode chegar até as famílias dos alunos e assim, com a ajuda da escola, fazer algumas intervenções, no sentido de resolver ou amenizar os conflitos familiares.

Na sua opinião, o ECA trouxe alguma contribuição à luta pela garantia do direito do aluno à escolarização?

Faz quatorze anos que o Estatuto da Criança e do Adolescente está em vigor, é muito comentado, muito criticado injustamente e, muitas vezes, as pessoas o culpam pelas mazelas da sociedade. No entanto, poucos conhecem a sua filosofia ou sequer leram o mesmo, continuando a ser um ilustre desconhecido para a maioria dos críticos. Muitas vezes querem aplicar o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas utilizando os princípios norteadores do revogado Código de Menores, que são completamente diferentes, a começar por compartilhar a responsabilidade de cuidar das crianças e dos adolescentes com a família, com a sociedade e com o Estado. Enquanto o Código de Menores dizia que o Estado assumia a responsabilidade da criança em situação irregular, o Estatuto diz que a criança e o adolescente merecem proteção integral. E o Estatuto da Criança e do Adolescente assegura apenas os direitos fundamentais que todo ser humano necessita para uma vida saudável, que são: direito à vida e à saúde, à convivência familiar e comunitária, à cultura, ao esporte e lazer, o direito ao trabalho e à profissionalização, o direito à educação.

Todas as escolas têm o ECA e a grande maioria não o utiliza. Que sugestões o senhor daria para garantir a sua utilização ?
A maior dificuldade que percebo é com relação aos professores, devido às inúmeras atividades propostas, que não têm tempo para se reunir para discussões e estudos sobre o ECA. Assim, sugiro que se insira no planejamento pedagógico “A semana da criança e do adolescente”, que seria um espaço para discussões, estudos e palestras sobre o ECA, além de inúmeras atividades envolvendo os alunos e suas famílias. Dessa forma poderia haver uma difusão maior desta importante lei e, assim, a conscientização da sociedade sobre seus direitos para que possa reivindicálos dos governantes.

Que relação o senhor vê entre direito e educação?

A Educação é direito de todos, é direito subjetivo, é direito da pessoa. E está prevista na Constituição Federal como direito fundamental. Essa situação tem que ficar mais clara na escola. Por exemplo, quando um diretor dá uma transferência compulsória para aluno indisciplinado, quando suspende o aluno por até cinco dias, ele está cerceando esse direito constitucionalmente assegurado a todos. Os regimentos escolares que prevêem sanções que impedem os alunos de freqüentar as escolas estão em confronto com a Constituição Federal. Só para vocês terem uma idéia, observem o que diz um regimento escolar que chegou às minhas mãos: “Em cumprimento à pena de suspensão o aluno receberá falta nas atividades realizadas, perdendo as avaliações desse período. Não terá direito de fazê-las ao retornar”. No meu entendimento, a suspensão de cinco dias, que impede o aluno de fazer as provas realizadas nesse período, é uma grande violência que a escola está praticando com o aluno; além de receber a falta, o aluno suspenso fica proibido de fazer as provas; vejam só o prejuízo que esse aluno terá. Fala-se tanto em medidas
pedagogicamente corretas... será que essa é uma medida pedagogicamente correta? Eu tenho discutido muito isso com os diretores. Tem sido uma grande batalha, porque eles não querem perder esse poder da sanção. Mas, na realidade, todos sabemos que essas medidas são equivocadas e inócuas, sem resultado prático.
Não quero dizer que não tenha que haver sanção, mas devemos buscar caminhos, alternativas que não violem o direito à educação.


EVIDÊNCIAS DE UMA BOA ESCOLA SEGUNDO ESTUDOS REALIZADOS PELA UNESCO / CHILE

1. Os alunos têm papel principal no processo de aprendizagem. Se observa a transformação da classe numa atividade grupal de análise e reflexão conjunta. O docente motiva, coordena, dirige, mas não é o único ativo.
2. A ordem (negociada e participativa) está na base dos processos que constroem o ambiente de aprendizagem. A norma se configura freqüentemente de forma solene em algum documento.O documento normativo adquire maior efetividade quanto maior consenso e participação tiver a comunidade escolar.
3. Os docentes colaboram e trabalham em equipe num ambiente com escassa ênfase na hierarquia.
4. Racionalidade e afetividade se situam como processos complementares.
5. Pais como atores significativos.
6. Busca de inovações. Os docentes inovam com êxito suas estratégias e princípios de ação para o sucesso da aprendizagem.
7. Organização cuja gestão leva em consideração toda ou a maior parte da comunidade escolar.
8. Clima de relações não autoritárias.
9. Ambiente atrativo de trabalho para os docentes.
10. Busca de estabilidade organizacional com menor rotatividade de profissionais.
11. Espaço para a iniciativa dos atores, inclusive para exercer o controle organizacional.
12. Respeito, cordialidade e expressões de afetividade caracterizam a forma de fazer as coisas .
13. Junto com o compromisso e o prazer que manifestam os atores, vai se configurando um clima organizacional em que é possível identificar uma coletividade e em que cada membro se sente pertencente ao grupo (trabalho coletivo que ameniza absenteísmo e descompromisso docente).
14. Fundamenta-se, mais do que nos recursos, numa visão pedagógica e na interrelação entre os atores educativos.
15. Uso eficiente do espaço pedagógico e físico.
16. Importância do diagnóstico de cada estudante, permitindo tomar em consideração tanto as diferenças individuais como fazer um prognóstico do avanço potencial do grupo.
17. Atividades integradas na vida do aluno, vinculando escola e comunidade.
18. Uso não tradicional do erro. Admite-se que o docente pode se equivocar. O erro é problematizado nas experiências relatadas, sendo transformado numa potencialidade educativa.
19. Clima de confiança entre estudantes e professores.
20. A escola é um lugar agradável para os alunos.
21. Importância das rotinas diárias. Nas rotinas diárias, a classe se conduz num ritmo dado pela conjunção entre alunos, docente e a atividade pedagógica, o que não significa disciplina no sentido tradicional, pois, apesar de uma aparente desordem, podem e devem predominar rotinas que permitam a interação entre professores e alunos.
22. Capacitação docente como base para a elaboração de estratégias pedagógicas.
23. Problemas e conflitos são aceitos e conduzidos adequadamente.
24. Os docentes enfatizam a prática da leitura entre os alunos.
25. Observa-se o esforço para contextualizar o ensino de matemática.
26. Outro elemento que favorece o aprendizado da matemática é o trabalho em grupo (resolução coletiva de problemas).
27. Não se enfatizam as tarefas ou deveres para casa. A tarefa para casa não aparece como recorrente nas estratégias pedagógicas. A tendência é desenvolver atividade intensa na escola, de tal modo que o aluno continue esse processo fora da escola, mas não como “tarefa”.
28. Enfatiza-se a adaptação de planos e programas às características dos alunos (planejamento).
29. Respeito à jornada escolar completa.
30. Relação adequada da quantidade de alunos por professor.
31. Predomina a tendência de não classificar os alunos, o que, sem dúvida, põe em questão as formas tradicionais de avaliação.
32. Os docentes esperam que os alunos aprendam muito e que a promoção seja alta.
33. Não há um padrão comum em termos de origem destas escolas: há escolas grandes, médias e pequenas, urbanas e rurais, privadas e estatais, laicas e religiosas.
(Primeiro Estudo Internacional Comparativo Linguagem e Fatores Associados 2000, Unesco / Chile). Extraído da palestra: “O direito à educação e os indicadores de qualidade”, proferida pela professora doutora Gilda Cardoso de Araújo, colaboradora do Cenpec.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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educação no Brasil – 1990 – 2000. Brasília, DF: Inep, 2004.
ARROYO. Miguel G. Oficio de mestre: imagens e auto-imagem. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000.
BRASIL, INEP. Indicadores de qualidade na educação. Ação educativa, Unicef.
BRASIL, ECA. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília, DF: Secretaria de
Estado dos Direitos Humanos, Departamento da Criança e do Adolescente, 2002.
BRASIL. LDB. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
BRASIL MEC. Diversidade na educação: reflexões e experiências. Brasília, DF: 2003.
BRASIL.Ação Educativa,2004.
CAMPOS, Maria Malta. A qualidade da educação em debate.
CENPEC – CENTRO DE ESTUDO E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO, CULTURA E AÇÃO
COMUNITÁRIA. Raízes e asas: gestão compromisso de todos.Volume 02
CURY, Carlos Roberto Jamil. Direito à educação: direito à igualdade, direito à
diferença. Caderno de Pesquisa, n.116, jul 2002.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948
EDUCAÇÃO EM DADOS, Censo escolar de 2000 a 2003.
FAUSTINONI, Zoraide. Ensino Fundamental: direito de cidadania - CENPEC.
FILEMON, Orley Olavo. A formação continuada em serviço e suas influências na
prática pedagógica do professor de Educação Física da rede estadual de ensino.
Universidade Federal de Goiás, 2004. Mimeografado.
MATTA, Roberto. Brasileiro e cidadão? São Paulo: Cultura Editores
Associados, 1992. p.87-125.
SACRISTÁN, José Gimeno. A educação obrigatória:seu sentido educativo e social.
Porto Alegre: Artmed, 2001.

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